Reconfiguração da extrema-direita: uma análise da composição eleitoral dos Fratelli d’Italia e da Lega depois das eleições nacionais italianas de 2022 | Giuseppe Cugnata
As eleições italianas de 2022 foram ganhas pela coligação de direita. No entanto, esta vitória esconde divisões internas profundas. Uma análise das transferências eleitorais mostra que enquanto o partido pós-fascista Fratelli d’Italia (FDI), liderado pela primeira-ministra Giorgia Meloni conseguiu 26% dos votos, fê-lo principalmente à custa dos aliados Forza Italia (partido de Silvio Berlusconi) e da Lega de Matteo Salvini, particularmente nos redutos do norte de Itália.
A análise da composição socioeconómica dos dois partidos revela uma diferença entre os FDI e a Lega: o primeiro obteve votação especialmente nas classes médias, enquanto o segundo preservou parte do eleitorado popular, perdendo eleitorado “tradicional” – trabalhadores independente e empresários. Por fim, a análise do posicionamento ideológico mostra que o voto nos FDI e na Lega está totalmente enraizado no campo da direita.
Uma visão global dos resultados das eleições italianas de 2022
A 28 de outubro de 1922, uma manifestação armada orquestrada pelos camisas negras de Benito Mussolini assaltou Roma e outras cidades italianas; a isto se chamou a Marcha Sobre Roma e marcou o início da ditadura fascista[1]. Exatamente cem anos depois, a 22 de outubro de 2022, a líder da extrema-direita italiana Giorgia Meloni é nomeada primeira-ministra da República italiana.
Os antecedentes políticos de Meloni começam nas fileiras do neofascista Movimento Social italiano (Movimento Sociale Italiano - MSI), tornando-se depois uma das figuras de proa da pós-fascista Aliança Nacional (Allleanza Nazionale - NA) e, quando o partido se juntou ao Povo da Liberdade (Popolo della Libertà - PDL) de Silvio Berlusconi, foi nomeada ministra da Juventude do quarto governo de Berlusconi. Em 2012, Meloni criou um partido chamado “Irmãos de Itália” (Fratelli d’Italia – FDI)[2] cujo símbolo - a chama tricolor anteriormente usada pelo MSI e a NA - representa a chama que se ergue do túmulo de Mussolini, evocando uma ligação tácita ao regime fascista[3].
Giorgia Meloni assumiu o cargo de primeira-ministra um mês após a realização das eleições legislativas, que decorreram a 25 de setembro de 2022, e que resultaram na vitória da coligação de direita[4]. Graças a um sistema eleitoral proporcional-maioritário misto - que atribui um terço dos assentos à coligação vencedora - e graças à maior taxa de abstenção na história das eleições italianas (68.3%), a coligação de direita conquistou uma maioria absoluta (43.79%) quer na Câmara dos Deputados, quer no Senado.
Como é mostrado na figura 1, a coligação de direita (representada a azul no mapa) conseguiu a primeira posição em praticamente todos os municípios. Ganha por todo o lado na Itália central e, também, no Norte (com exceção da região autónoma do Valle d’Aosta e na província autónoma de Bolzano, onde os partidos regionalistas ficaram em primeiro). A direita tem forte penetração nas Regioni Rosse (as “Regiões Vermelhas”, ou seja, Toscânia, Emilia Romagna, Umbria e Marche, tradicionalmente associadas ao Partido Comunista Italiano). Aqui, a coligação de centro-esquerda[5] conseguiu a custo ficar à frente em alguns dos municípios (representados a vermelho no mapa). A coligação de centro-esquerda obteve 26.13% dos votos (o Partido Democrático confirma um baixo resultado de 19.07%, o mesmo que nas eleições anteriores).
Figura 1. Mapa das coligações/listas vencedoras em cada município italiano.
Fonte: Sondaggi BiDiMedia
No Sul de Itália o Movimento Cinque Stelle (“Movimento Cinco Estrelas” – M5S), liderado pelo antigo primeiro-ministro Guiseppe Conte, conseguiu ficar à frente em vários municípios (a amarelo no mapa). Comparando com as eleições legislativas de 2018, o M5S perde mais de 6 milhões de votos, mas atinge ainda 15.43% dos votos através de uma campanha orientada especialmente para o eleitorado popular. A esquerda apresenta-se, uma vez mais, dividida: por um lado, a aliança Verde-Esquerda (dentro da coligação de centro-esquerda) consegue 3.63% dos votos e 16 assentos e, por outro lado, a lista da Unione Populare (“Unão Popular” – UP) - que junta o Partido da Refundação Comunista, o Potere al Popolo e outras listas da esquerda radical - liderada pelo antigo presidente da Câmara de Nápoles Luigi de Magistris e que consegue 1.43%, e nenhum assento.
A extrema-direita canibaliza-se a si mesma
A recente vitória eleitoral mascara fraturas profundas no interior da direita – e, em particular, da extrema-direita. O peso de cada uma das forças políticas dentro da coligação é, de facto, muito desequilibrado. Se os Fratelli d’Italia conseguiram obter 26% dos votos, os seus aliados obtiveram menos de um terço dos votos cada um: a Forza Italia 8.11% e a Lega 8.77%. A análise das transferências eleitorais revela que o resultado dos Fratelli d’Italia foi conseguido à custa da sangria dos seus aliados eleitorais. Como demonstra a análise da empresa de estudos eleitorais SWD (figura 2), os FDI crescem de 4.3% nas eleições de 2018 para 26.1% em 2022, com um eleitorado composto por 20% de antigos eleitores da Forza Italia e 30% de antigos eleitores da Lega. Esta última surge como a verdadeira derrotada nestas eleições, se considerarmos que apenas há três anos obteve 34.3% de votos nas eleições europeias.
Figura 2: Transferência de votos para os Fratelli d’Italia
Fonte: SWG
A análise de transferência de votos feita pela Ipsos entre as eleições europeias de 2019 e as legislativas de 2022 revela que a Lega apenas conseguiu recuperar 21.9% dos eleitores, enquanto 38.4% decidiu votar nos FDI e 26.7% absteve-se[6]. Estes resultados mostram, portanto, a canibalização da Lega pelos Fratelli d’Italia.
Este processo é evidente quando se olha para os resultados da extrema-direita no norte de Itália, o reduto da Lega. Aqui o voto nos FDI aumentou 516.2% em comparação com 2018[7]. Em Veneto, uma região atualmente governada pela Lega – e que também tem vários dos municípios - Salvini consegue 14% dos votos, o resultado mais baixo em dez anos, enquanto os FDI alcançam 32%. As estruturas de voto (municípios, secções locais) que outrora catalisaram o voto na Lega implodiram e foram agora substituídas por uma opinião de voto de direita generalizado que, de tempos a tempos, é hegemonizada pelo candidato mais forte – neste caso, Giorgia Meloni[8].
A representação geográfica do voto (figura 3) mostra uma divisão muito clara do espaço entre os Fratelli d’Italia, a Lega e a Forza Italia. Os FDI (a azul-escuro, na primeira das imagens) que teve historicamente os seus redutos no Centro e Sul de Itália, parece agora ter principal preponderância nas regiões do Centro e do Norte. A Lega (a verde, imagem central) surge concentrada no Norte do país. No entanto, isto não significa que a Lega tenha voltado às suas fronteiras “naturais” sem que se tenha estabelecido noutros locais. Alguns estudos mostram que a diferença de votos entre Norte e Sul é menor em 2022 do que em eleições anteriores[9]. A homogeneização geográfica do voto na Lega ocorre, assim, em baixa: ao não ter sido capaz de conseguir mais votos no Sul, mas, pelo contrário, tendo perdido muitos votos no Norte, produziu-se um equilíbrio indireto na distribuição do voto. No Sul, onde a Forza Italia (a azul-claro, última imagem) administra algumas regiões e grandes cidades, o partido de Berlusconi resiste à competição interna mantida com o partido aliado Fratelli d’Italia.
Figura 3: Distribuição geográfica dos votos em cada um dos membros da coligação de direita.
Nenhuma atração para além das fronteiras da direita
Giorgia Meloni teve sucesso em penetrar e hegemonizar o eleitorado de direita. Conseguiu, também, atrair alguns segmentos do antigo eleitorado do Movimento Cinco Estrelas (17% do eleitorado dos FDS é composto por pessoas que votaram M5S em 2018, de acordo com a SWG). No entanto, é necessário considerar que o eleitorado do Movimento Cinco Estrelas era tradicionalmente heterogéneo e que grandes segmentos, especialmente durante o pico eleitoral de 2018, estavam já polarizados à direita[10]. Um grande segmento deste eleitorado tinha já abandonado o M5S e passado para a extrema-direita nas últimas eleições europeias. Giorgia Meloni, por outro lado, falhou em captar para além do eleitorado “tradicional” da direita. Por exemplo, falhou amplamente na mobilização da abstenção[11].
Os dados no autoposicionamento político (figura 4) mostram um resultado muito claro. O partido de Giorgia Meloni atrai quase exclusivamente eleitores que se consideram a si próprios de direita: 47% consideram-se de centro-direita, 31% de direita e 13% nem de direita, nem de esquerda. A tese do chamado “esquerdo-lepenismo” (“gaucho-lepenism”)[12], com origem na ciência política francesa para analisar a existência de eleitores que se posicionam à esquerda ou que provêm de círculos sociais de esquerda, mas que votam na extrema-direita, fica por demonstrar no caso italiano. Apenas 1% do eleitorado de Meloni se posiciona à esquerda e 3% no centro-esquerda.
Figura 4: Autoposicionamento político dos eleitores italianos em 2022
Fonte: Ipsos
Apesar da reconfiguração interna do campo da direita, o autoposicionamento do eleitorado da Lega também não parece ser distante do dos FDI: 48% dos eleitores posiciona-se no centro-direita, 28% na direita e 13% nem na direita, nem na esquerda. Uma vez mais, as percentagens de eleitores que se posicionam à esquerda (1%) ou no centro-esquerda (3%) é mínima.
Fratelli d’Italia e Lega: semelhanças e diferenças ao nível socioeconómico
Apesar da semelhança na auto-identificação política, eleitores dos Fratelli d’Italia e da Lega diferem parcialmente do ponto de vista sociodemográfico (figura 5). Relativamente à composição por género, o eleitorado dos Fratelli d’Italia é composto por mais homens (27.6%) do que por mulheres (24.2%). Inversamente, a Lega recebe parcialmente mais apoio de mulheres (9.5%) do que de homens (8.1%), ainda que a diferença seja muito pequena. Portanto, o facto de o maior partido da extrema-direita ser liderado por uma mulher não implica uma inversão de género da tradicional sobre-representação masculina no eleitorado da extrema-direita.
Ambos os partidos de extrema-direita estão sub-representados nos grupos de eleitores mais jovens (os FDI atingem 15.8% e a Lega 5.2% no segmento 18-34 anos) e estão sobre-representados entre os segmentos da população com níveis mais baixos de escolaridade: 29% para os FDI e 10.8% para a Lega. Estes resultados estão em consonância com a literatura no eleitorado da extrema-direita. Como observado por Daniel Oesch, os ressentimentos culturais, mais do que os económicos, estão na base do apoio do eleitorado com menor escolaridade à extrema-direita: “indivíduos com níveis de instrução mais baixos poderão percecionar a imigração e as culturas estrangeiras com ameaças maiores à sua identidade”