Chega: o pior do sistema português passou a ter um partido. Artigo de Fabian Figueiredo

março 02, 2021 0 Comentários A+ a-

O excepcionalismo português foi durante muitos anos alvo de interrogação e de estudo. Portugal integrava, até 2019, um grupo restrito de países da União Europeia sem representantes da extrema-direita nos seus parlamentos. 

Expresso | “Ó André, não levantes a mão assim que eles vão já fotografar”.  A marcha de Ventura para chamar os “portugueses comuns” 

O facto de Portugal ser uma jovem democracia, saída (por via revolucionária) de um longo período de 48 anos de ditadura fascista e de 13 anos de guerra colonial, era uma das razões mais comumente mobilizadas para explicar esta característica particular. A memória recente dos crimes da ditadura do Estado Novo de António Oliveira Salazar e de Marcello Caetano e as conquistas democráticas da Revolução do 25 de Abril de 1974, contribuíram decisivamente para manter a extrema-direita portuguesa, durante largos anos, em quarentena. Por outro lado, o mapa partidário português revelou-se ser bastante resiliente, principalmente no campo das direitas. Até 2019, os dois principais partidos da direita portuguesa, o Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democráticos Social (CDS), nunca viram nascer à sua direita uma formação política que se conseguisse afirmar politicamente.
    Estas duas características fundamentais: a memória da repressão e da pobreza da ditadura e a estabilidade da organização partidária deram à democracia portuguesa 45 anos sem representantes de partidos de extrema-direita eleitos nos parlamentos nacionais e regionais e nos municípios.
    
Uma radiografia rápida da extrema-direita portuguesa no pós-25 de Abril

    Ainda a democracia portuguesa dava os seus primeiros passos e já se tinha de confrontar com a desestabilização orquestrada por grupos terroristas de extrema-direita. Organizações terroristas como o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), o ELP (Exército de Libertação Português) e a Maria da Fonte, compostos essencialmente por elementos da extinta polícia política (PIDE) e fações fascistas do exército, foram responsáveis por centenas de raptos, assassinatos e atentados bombistas a militantes e organizações de esquerda. Para a sua capacidade operacional em muito contou, não só o financiamento de empresários e homens da finanças saudosistas do Estado Novo e o apoio de setores mais reacionários da Igreja Católica, mas sobretudo o apoio das ditaduras franquista espanhola e militar brasileira. O Gabinete Político do MDLP operava a partir de Madrid e os terroristas do ELP recebiam treino em quintas espanholas. O líder do MDLP, o marechal António de Spínola, exilou-se no Brasil, após a sua tentativa de golpe de Estado ter saído frustrada a 11 de março de 1975. Nas atuais regiões autónomas dos Açores e da Madeira nasceram organizações terroristas de pendor separatista que pretendiam conter à bomba os ventos que sopravam de Lisboa, respetivamente a Frente de Libertação dos Açores (FLA) e a Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira (FLAMA)
Na frente eleitoral, a direita saudosista da ditadura organiza-se em vários micro partidos e coligações fracassadas: o PDC (Partido da Democracia Cristã), o MIRN (Movimento Independente para a Reconstrução Nacional / Partido da Direita Portuguesa), o PP/MFP (Partido do Progresso / Movimento Federalista Português) ou a Frente Nacional.
O golpe do 25 de Novembro de 1975, pondo termo ao Processo Revolucionário em Curso (PREC), faz recrudescer as atividades das organizações terroristas. O ELP e o MDLP dão as suas operações como terminadas em 1976 e a FLAMA faz o seu último atentado em 1978. Os partidos de extrema-direita definham até se extinguirem. Os interesses económicos e as personalidades ligadas a estes setores da direita radical portuguesa integram-se, na sua larga maioria, no CDS e no PSD. Uma minoria mantém-se à margem.
Nas décadas de 1980 e 90 o movimento neonazi ganha alguma  expressão nas zonas do grande Porto e de Lisboa. Organizam manifestações, concertos e criam um novo partido, o Movimento de Ação Nacional (MAN), que acabaria por ter, como todos os seus antecessores, uma vida curta. A atividade destes grupos fica praticamente circunscrita a ações violentas e a uma ligação umbilical ao crime organizado. Os “carecas” portugueses são culpados pelo assassinato de um jovem negro, Alcindo Monteiro, e pelo ativista de esquerda do Partido Socialista Revolucionário (PSR), Zé da Messa. Em consequência dessa estratégia enfrentam a justiça portuguesa. Os seus principais dirigentes são presos.

Em 1999, um grupo de militantes de extrema-direita infiltra-se num partido centrista em erosão, o Partido Renovador Democrático (PRD), pagam-lhe as dívidas, tomam controlo da sua direção e mudam-lhe o nome para Partido Nacional Renovador (PNR). O Tribunal Constitucional português aceitaria esta mudança em abril de 2000. A extrema-direita portuguesa procura reagrupar-se à volta do PNR, mas ao contrário do que acontecia em vários países europeus, não consegue fugir das margens.
O PNR acumula sucessivos fracassos. O melhor resultado que obtiveram em eleições legislativas foi em 2015, ficando-se pelos 0,18% dos votos; não consegue atrair quadros qualificados, nem suscitar interesse junto do poder económico.

A radicalização da direita portuguesa

Em 2011, a direita portuguesa volta ao poder. PSD e CDS, apoiados na intervenção externa da Troika, aplicam um violento programa de austeridade ao longo de 4 anos. Mais de meio milhão de portugueses são forçados a emigrar, o desemprego atinge os 15,5%, os níveis de emprego recuam para valores próximos dos registados na década de 1980, os funcionários públicos e os pensionistas vêem os seus rendimentos mensais cortados e a generalidade do trabalhadores os seus impostos aumentados.
A ressaca da doutrina de choque foi pesada e abre brechas no campo da direita portuguesa. Em 2015, perde a maioria nas eleições legislativas e vê nascer uma maioria de esquerda com um programa de reversão das medidas antissociais que havia tomado. A herança da troika divide o PSD. O ex-primeiro-ministro Passos Coelho abandona a liderança do partido, sucedendo-lhe Rui Rio. Um crítico dos “excessos” austeritários que o seu partido havia submetido à sociedade portuguesa. Remetido à oposição até hoje, o PSD continua dividido entre duas alas, uma herdeira do austeritarismo de Passos Coelho e outra que procura reposicionar o partido ao centro, protagonizada pelo atual líder.  
    O CDS vê Paulo Portas, o seu líder histórico e ex-vice-primeiro-ministro do governo da troika, a abandonar a chefia do partido e a deixá-lo à ex-ministra da Agricultura, Assunção Cristas. O partido acumula derrotas em eleições nacionais e a sucessora de Paulo Portas demite-se. Hoje, com um novo líder neoconservador, Francisco Rodrigues dos Santos, o CDS encontra-se balcanizado e enfrenta sondagens de 0,3%.
A radicalização da direita tradicional e a crise que isso provocou no seu campo, abriram portas ao surgimento de dois novos partidos à sua direita, o ultraliberal Iniciativa Liberal e o Chega, de extrema-direita, liderado por André Ventura. Ambos representam a autonomização de setores radicalizados da direita portuguesa, que se viam representados na liderança de Passos Coelho. Não por acaso, os seus líderes e principais dirigentes elogiam frequentemente o legado do seu governo.

O nascimento do Chega e a sua evolução eleitoral

Nas eleições autárquicas (locais) de 2017, o PSD candidata André Ventura à presidência do município Loures, o 6º maior de Portugal, situado nos arredores de Lisboa. Ventura era conhecido pelas suas intervenções acaloradas em defesa do SL Benfica (o maior clube de futebol português) em painéis televisivos de comentário desportivo  e pelas intervenções incendiárias justicialistas na imprensa tablóide portuguesa. O também dirigente nacional do PSD elege como bandeiras de campanha a perseguição da comunidade cigana, a defesa da pena de morte, da prisão perpétua e o reforço da repressão e vigilância policial. O discurso nacional-populista cria incómodo no seu parceiro de direita, o CDS, que rompe com a coligação.
Apesar da forte contestação e resistência que o seu discurso xenófobo e autoritário criam na sociedade portuguesa e também entre setores e dirigentes do PSD, o então líder Pedro Passos Coelho renova o apoio a André Ventura e apresenta-se ao seu lado na campanha eleitoral. Este gesto pode ser lido hoje como a queda do primeiro cordão sanitário entre a direita e a extrema-direita portuguesas.
André Ventura é eleito vereador e a candidatura que lidera ocupa o 3º lugar, atrás do Partido Comunista Português (que dirige o município desde 2013) e do Partido Socialista. Em 2018, após Pedro Passos Coelho ter abandonado a presidência do PSD, Ventura sai do PSD e da vereação e anuncia a criação de um novo partido, o Chega.
    A formação de extrema-direita, após várias polémicas iniciais (tentaram legalizar o partido com recurso a assinaturas falsas), é aceite pelo Tribunal Constitucional em abril de 2019.
    Em maio de 2019, disputa as eleições europeias sob o guarda-chuva da coligação “Basta”, a que se juntaram o Partido Popular Monárquico (PPM), os tradicionalistas católicos do Partido Pró-Vida (PPV) e um microgrupo liberal, a “Democracia XXI”. A frente eleitoral da direita radical encabeçada por Ventura fica fora do Parlamento Europeu. Acaba em 9º lugar, atingindo cerca de 50 mil votos (1,49%). Nas eleições legislativas, o Chega apresenta-se sozinho a eleições, mas integra o PPV nas suas listas. Conquista 67.826 votos (1,29%) e vê o seu líder ser eleito deputado pelo círculo de Lisboa. Poucos meses depois, declara a sua intenção de se candidatar às eleições presidenciais de janeiro de 2021.

O momento andaluz da direita portuguesa

Desde a fundação do Chega, instalou-se um debate na direita tradicional portuguesa sobre o relacionamento com a extrema-direita.  Até às eleições regionais dos Açores de outubro de 2020, os líderes da direita parlamentar portuguesa recusavam qualquer acordo com o partido de André Ventura, que acusavam de apresentar propostas incompatíveis com os seus programas e princípios "democráticos" e "humanistas".
A melhor prova do pudim é comê-lo. Nas eleições açorianas, o Partido Socialista perdeu a maioria absoluta. A direita podia, após um longo período de 24 anos de oposição, regressar ao poder. Para isso bastava que José Manuel Bolieiro (líder do PSD/Açores) celebrasse um acordo parlamentar com o Chega, que elegeu dois deputados e conquistou 5% dos votos.
A extrema-direita impôs ao PSD três condições. A primeira foi um compromisso em cortar em 50% o número de beneficiários do RSI (O Rendimento Social de Inserção é um apoio social que se dirige aos mais pobres entre os pobres. Em média, cada beneficiário açoriano recebe 86,11 euros mensais. Os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) demonstram que quase 10% dos beneficiários açorianos trabalham, 61,3% são mulheres, maioritariamente solteiras entre os 35 e os 44 anos. Os Açores são mesmo a região mais pobre de Portugal.  Além disso, o Chega exigiu a criação de um "gabinete de combate à corrupção" - uma medida populista inconsequente - e a redução do número de deputados da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, uma medida que, por depender da aprovação do parlamento da República e da própria região, dificilmente verá a luz do dia.
    A direita portuguesa teve, no meio do Atlântico, o seu “momento andaluz”. O precedente do acordo açoriano demonstra que a direita liberal e conservadora portuguesa fará acordos com a extrema-direita sempre que a chave do poder estiver em sua posse. Pouco lhes interessa, na hova de tomar o poder, que, com isso, esteja a aprofundar a naturalização do discurso racista, xenófobo e autoritário, herdeiro dos piores episódios da história contemporânea portuguesa.

De que é feito o Chega?

 Se, durante os primeiros meses da sua existência, o Chega procurou evitar o rótulo de partido de extrema-direita. Hoje, isso parece ter deixado de ser encarado como um problema pela direção do partido. A formação liderada por André Ventura decidiu recentemente filiar-se no partido europeu Identidade e Democracia, que reúne o grosso da extrema-direita europeia. Troca elogios públicos com a família Bolsonaro, desloca-se a Itália para fazer campanha ao lado de Matteo Salvini, visita Marine Le Pen em Paris e recebe-a, em plena campanha presidencial, em Lisboa.
A retórica e as táticas que emprega para consolidar a sua base social também parecem decalcadas dos guiões da extrema-direita internacional, particularmente do bolsonarismo: agenda económica neoliberal, discurso securitário, profundamente racista e xenófoba, apelos saudosistas ao colonialismo português e à ditadura do Estado Novo, populismo justicialista, misturado com referências messiânicas cristãos. André Ventura chegou mesmo a afirmar publicamente que Deus lhe tinha confiado a “difícil mas honrosa tarefa de transformar Portugal”.
As semelhanças não se ficam por aqui. Segundo peritos informáticos portugueses, a milícia digital do Chega é composta por, pelo menos, 20 mil contas falsas nas redes sociais. Este dado explica, em boa parte, o sucesso do partido no Facebook e no Youtube. Este dispositivo é não só usado para potenciar a propaganda do partido, mas sobretudo para espalhar desinformação e atacar jornalistas, dirigentes de esquerda e ativistas de movimentos sociais. O Chega é uma verdadeira fábrica de mentiras que deixa os “fact checkers” portugueses sem mãos a medir.
O programa ecónomico é uma verdadeira vulgata liberal. O Chega propõe-se desmantelar completamente o Estado Social português. Quer privatizar o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública, a Segurança Social e os Transportes Públicos e entregar todos estes bens comuns a grupos privados. Acabar com a progressividade fiscal e introduzir taxas planas que, se aplicadas, aumentariam a carga fiscal a quem ganha menos, para a baixar a quem ganha muito mais. Liberalizar por completo os despejos e o Código do Trabalho. No seu manifesto eleitoral, o partido defende mesmo a redução dos salários. Se a doutrina de choque agressiva defendida por Ventura lhe tem criado obstáculos em entrevistas e debates com adversários - Portugal é um dos países mais desiguais da UE, a taxa de risco de pobreza antes de transferências sociais atinge 43% da população - por outro lado tem servido de isco para atrair financiamento e apoio de vários empresários, investidores imobiliários e banqueiros (muitos deles ligados a vários escândalos financeiros).
Muitos dos “Donos de Portugal” assumem publicamente que mobilizam os seus recursos para apoiar André Ventura. É o caso do empresário do armamento João Maria Bravo, dono da Sodarca e da Helibravo, de Miguel Félix da Costa, cuja família foi representante durante 75 anos dos lubrificantes Castrol, hoje um influente gestor de investimentos imobiliários e turísticos, de Carlos Barbot, dono das Tintas Barbot ou de Paulo Mirpuri, CEO da companhia aérea Hi Fly e da Mirpuri Investments. A extrema-direita portuguesa também conta com fortes aliados no universo financeiro. Entre eles, vários altos quadros do universo do falido Grupo Espírito Santo (GES) como Francisco Sá Nogueira, Salvador Posser de Andrade ou Pedro Pessanha. Os últimos dois são filiados no partido. O ainda administrador da ex-gestora imobiliária do GES, a Coporgest, Posser de Andrade, foi dirigente nacional e candidato às legislativas por Lisboa, enquanto Pedro Pessanha, antigo assessor do grupo financeiro em Angola, é presidente da distrital de Lisboa. Francisco Cruz Martins, antigo testa de ferro dos negócios da elite angolana em Portugal, e um dos nomes portugueses referidos no escândalo internacional dos “Panama Papers”, mas também em vários outros casos de corrupção nacionais, como o caso “Vale do Lobo” ou da falência do banco madeirense Banif, é um fervoroso apoiante de André Ventura. O mesmo se pode dizer do empresário farmacêutico César do Paço, dono da Summit Nutritionals International, que até 2019 financiava o CDS. Este também ex-cônsul de Portugal na Flórida, para além de financiar o Chega, também colocou o seu homem de mão no partido - José Lourenço que, até janeiro de 2021, ocupou o cargo de presidente da distrital do Porto.
Como outros partidos populistas de direita radical europeus, a militância de Chega e a estrutura diretiva é composta por uma amâlgama de grupos. O ideólogo do partido e primeiro vice-presidente do partido, Diogo Pacheco de Amorim, tem um vasto currículo na extrema-direita portuguesa. Integrou os movimentos estudantis fascistas que se situavam na ala direita da ditadura do Estado Novo, passou pelos grupos terroristas MDLP, onde integrou o “Gabinete Político”, e pelo MIRN. Foi representante português da revista neofascista francesa “Nouvelle École" e tradutor de textos de Alain de Benoist para português. Passou ainda pelo CDS-PP. É também membro do movimento tradicionalista católico “Comunhão e Libertação”. O segundo vice-presidente Nuno Afonso, atual chefe de gabinete de André Ventura na Assembleia da República, fez todo o seu percurso partidário anterior no PSD, tal como o presidente do Chega. Na direção do partido figuram ainda um presidente de um sindicato das Polícia, José Dias, um membro da Opus Dei, Pedro Frazão, e a líder dos evangélicos neopentecostais do Chega, Lucinda Ribeiro, também ativa em grupos negacionistas da pandemia Covid-19.
A Mesa da Convenção Nacional do partido parece ter sido o local escolhido para a ala ultranacionalista se sentir representada. O presidente deste órgão, Luís Filipe Graça, foi membro de vários grupos neonazis, como o NOS ou o MON, mas também dirigente do PNR. Nelson Dias da Silva, vogal deste órgão e membro do grupo de estudos do Chega, acumula estas funções com a de porta-voz da organização neofascista “Portugueses Primeiro (P1)”, de que fazem parte várias caras conhecidas do movimento neonazi português, tal como João Martins, o assassino do jovem negro Alcindo Monteiro.
    O partido é uma força crescente junto das forças de segurança. O Movimento Zero (uma importação do movimento americano "Blue Lives Matter") está fortemente ligado ao Chega. Em Novembro de 2019, organizou um protesto em frente ao parlamento português, juntamente com as estruturas sindicais das polícias. André Ventura foi recebido em êxtase por centenas de políticos e foi o único líder político a ser convidado a discursar no palco da manifestação.
    
As presidenciais e a reconfiguração da direita portuguesa

Nas eleições presidenciais de janeiro de 2021, André Ventura ficou em terceiro lugar, com 11,9% votos, atrás do titular do cargo Marcelo Rebelo de Sousa (60,70%), apoiado por PSD e CDS, e da socialista Ana Gomes (12,97%), que não contou com o apoio do seu partido (PS), mas reuniu o suporte do Pessoas Animais e Natureza (PAN) e do europeísta LIVRE. João Ferreira, o candidato apoiado pelo Partido Comunista Português (PCP), obteve 4,32%, Marisa Matias, apoiada pelo Bloco de Esquerda conseguiu 3,95% dos votos e o ultraliberal (IL) Tiago Mayan 3,22%.
O candidato da extrema-direita cantou vitória, apesar de ter definido como objetivo ficar à frente de Ana Gomes. O resultado obtido por Ventura levou a muita especulação. Na noite eleitoral, muitos comentadores precipitaram-se, dizendo que o líder da extrema-direita teria conquistado os seus votos junto do eleitorado tradicional da esquerda. Estudos recentes e mais cuidados têm desmentido esta tese. O eleitorado de esquerda, que escapou a Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias, concentrou o seu voto no Presidente da República em funções. O facto de Marcelo Rebelo de Sousa não ter obstaculizado a governação da maioria de esquerda e se ter apresentado às eleições como uma barreira à agenda racista e autoritária da extrema-direita, deram-lhe uma vitória folgada à primeira volta, contanto com isso com o apoio de milhares de votantes tradicionais socialistas, bloquistas e comunistas.  
André Ventura viu os seus votos virem das franjas eleitorais mais radicais da direita tradicional, sobretudo no interior do país e na região centro. Para isso terá certamente contribuído a naturalização do Chega que o PSD tem feito, principalmente após o acordo açoriano, e a erosão do CDS. O discurso racista e violento contra a comunidade cigana, também parece ter cumprido o seu papel. André Ventura alcançou resultados expressivos nos concelhos em que a população cigana é mais numerosa, sobretudo no Alentejo. Haverá certamente entre o quase meio milhão de eleitores de André Ventura nas eleições presidenciais muitas pessoas provenientes das camadas populares que encontraram nesta candidatura o depósito da sua frustração, mas, segundo vários académicos portugueses, estes eleitores são na sua larga maioria cidadãos que, na sua larga maioria, já votavam à direita (CDS e PSD).
A balcanização da direita partidária em quatro (PSD, CDS, Chega e Iniciativa Liberal) não tem permitido a esta mobilizar uma maior fatia do eleitorado. Todos os estudos de opinião indicam que a larga maioria dos portugueses continua a sentir-se representada pelos partidos do campo da esquerda. O que não deve ser visto por esta com conforto ou despreocupação.
Portugal atravessa três graves crises: a crise pandémica, a crise social e a crise económica. A esquerda portuguesa tem de ser capaz de encontrar um programa maioritário e mobilizador para vencer a crise e que não deixe ninguém para trás. O rastro de desemprego e de redução de rendimentos, que milhares de portugueses estão a enfrentar, aliado ao natural cansaço que as medidas de confinamento impõe, podem rapidamente transformar-se num rastilho para a ascensão de uma maioria de ultradireita. A adivinhação em política é sempre um exercício arriscado, mas dificilmente um próximo governo liderado pela direita não ficará na dependência da extrema-direita e da sua agenda racista, divisionista e autoritária - com as consequências a que assistimos com Salvini em Itália, Órban na Hungria, Trump nos EUA ou de Bolsonaro no Brasil.

* Fabian Figueiredo é sociólogo e dirigente do Bloco de Esquerda