Devemos responder a André Ventura? Artigo de Joana Louçã

julho 17, 2020 0 Comentários A+ a-

Parte da esquerda ainda está a recuperar da desilusão com o país que tantos anos depois do 25 de Abril deixou de ser a exceção da Europa e elegeu um deputado de extrema direita. As respostas não se fizeram esperar e a cada declaração polémica segue-se uma reação imediata nas redes sociais. Mas será esta a melhor estratégia?
Artigo de Joana Louçã
Vergonha. Por Tiago Tavares.

Como surgiu André Ventura? 

O percurso de André Ventura é conhecido. Aos 14 anos batizou-se por iniciativa própria, decidiu ser padre e viveu num seminário em regime de internato até mudar de ideias. Estudou sempre em escolas públicas e um percurso academicamente irrepreensível levou-o, já funcionário público na Autoridade Tributária, a ser convidado a lecionar numa universidade pública e numa privada. Um percurso que parecia blindado para o sucesso, até os jornalistas terem começado a olhar para o seu passado e o castelo ter começado a abanar. Fernanda Câncio leu a sua tese de doutoramento e encontrou contradições evidentes, provável razão pela qual a tese só se encontrava na Biblioteca Nacional, onde é de entrega obrigatória. Ventura defendia em 2013 que o pânico social levou à “estigmatização de certas comunidades que foram associadas, de modo superficial, ao fenómeno terrorista” mas em 2016 já afirmava que “é fundamental reduzir drasticamente a presença e a dimensão das comunidades islâmicas dentro da União Europeia”. Poderia citar-se vários outros exemplos de mudanças radicais de opinião sobre a pena de morte, prisão perpétua ou abuso policial.

A personagem que é André Ventura começou a transparecer. Anos antes, quando começou a aparecer nos écrans da Benfica TV (dirigida pelo seu primo, Pedro Guerra, o famoso assessor no ministério de Paulo Portas que ganhava mais que o próprio ministro) e da Correio da Manhã TV, começou por apostar numa carreira literária. Escreveu dois romances (“Montenegro” e “A Última Madrugada do Islão”, ambos publicados na Chiado Editora) e na altura chegou a dizer que queria ser o escritor mais lido em Portugal: “adoro escrever. Quero ser um escritor cada vez melhor. Quero ser escritor até morrer. Quero morrer a escrever…”. Apesar da tendência para o exagero, parece ter desistido e passou a colocar as suas fichas noutro lado, com proveito.

Foi ganhando importância dentro do aparelho do PSD (partido do seu padrinho de casamento, Rui Gomes da Silva, ex-ministro de Santana Lopes e ex-vice-presidente do Benfica) e foi eleito para o Conselho Nacional na lista do seu amigo Sérgio Azevedo. Foi escolhido como cabeça de lista nas autárquicas em Loures (a sexta maior cidade do país) e garantiu que a sua campanha não passava despercebida. Terá encomendado um inquérito aos habitantes daquele município para perceber qual o tema fracturante na cidade. A relação com a comunidade cigana foi escolhida como tema central da campanha (“temos tido uma excessiva tolerância com alguns grupos e minorias étnicas”, “há minorias no nosso país que acham que estão acima da lei", “os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado”, etc.).

Azevedo foi vice-presidente do grupo parlamentar do PSD, onde foi profícuo em escândalos: foi apanhado numa viagem à China oferecida pela marca Huawei, foi intitulado de “deputado do Benfica” por ter transmitido documentação interna do parlamento a responsáveis do Benfica, e, sobretudo, foi considerado o cabecilha de um esquema de corrupção e tráfico de influências ainda sob investigação pela Polícia Judiciária na operação “Tutti Frutti”. André Ventura continua a ser investigado neste caso, pela contratação de um falso assessor no seu gabinete de Loures.

O tempo passou e, no caso de André Ventura, foi bem aproveitado. Nas autárquicas de 2017, a sua candidatura obteve em Loures o melhor resultado do PSD em 20 anos, 21.5%, com mais 5 mil votos e um vereador que nas eleições anteriores. Em 2018 rompe com o PSD, no ano seguinte forma o Chega, nas eleições europeias concorre em coligação e obtém 50 mil votos no país, 1.5%. Volta a concorrer às legislativas, desta vez com o Chega a solo e o resultado foi a sua eleição com 22 mil votos em Lisboa, 66 mil no total do país.

O que defende o Chega?

Os primeiros tempos no parlamento correm como quer, mantendo o ritmo de polémica e a presença mediática, ao mesmo tempo que insiste num discurso simples e repetitivo: o governo é uma vergonha, o problema é do sistema e nem Marcelo Rebelo de Sousa se salva.

No entanto, numa análise mais profunda, o cavaleiro branco da extrema direita volta a fraquejar, novamente, quando confrontado com o que defendeu no passado. Desta vez, não é preciso recuar três anos, basta uns meses. Daniel Oliveira sintetiza aquilo que outros já tinham começado a referir: o programa eleitoral do Chega defende a destruição total do Estado Social e medidas ultra liberais muito além daquilo que qualquer outro partido defende nesse campo.

No seu programa, o partido defende que “ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de Educação ou de Saúde, ou sejam os bens públicos como vias de comunicação ou meios de transporte”. As funções sociais do Estado “devem tender para um estatuto de mera residualidade” e devem manter-se apenas quando não houver ninguém “a manifestar interesse na sua prestação”. “Mesmo na esfera das funções soberanas e principalmente na esfera das funções patrimoniais, os setores delegáveis deverão sê-lo sem qualquer hesitação”. Em suma, é preciso um "afastamento decidido do modelo do Estado Social e do regresso ao Estado Arbitral".

Na economia, o Estado deve ser apenas uma “entidade arbitral e reguladora”, nunca dinamizadora, e muito menos motora dessa atividade”. Ao Estado dá-se uma função “supletiva e/ou complementar”, mas só depois de “esgotadas todas as alternativas privadas, sociais, mutualistas ou cooperativas” na prestação de quaisquer serviços. No seu programa, o Chega especifica ainda que, ao Estado, não compete “a detenção direta ou indireta, maioritária ou minoritária, com golden-share ou sem ela, do capital social de qualquer empresa industrial ou de serviços”.

Resumidamente, “o princípio universal haverá de ser o do utilizador-pagador”. “Quem usufrui de bens ou serviços, qualquer que seja o seu produtor ou prestador, terá de os pagar”. Para isso, num primeiro momento, haveria Cheques-Ensino, Cheques-Habitação e Cheques-Saúde entregues às pessoas. O período de adaptação seria “gradual mas rápido” e, uma vez findo, cada pessoa paga integralmente pelos serviços que usa, excepto se tiver “absoluta, óbvia e provada incapacidade para uma normal subsistência”. Isto é, os pobres terão escolas só de pobres e hospitais só de pobres.

O Chega quer acabar com o Ministério da Educação e ceder as escolas a quem as queira explorar. “As instalações escolares passariam, num primeiro momento, para a tutela da Direção Geral do Património que, de seguida, as ofereceria a quem nelas demonstrasse interesse”. Nem o Ensino Superior escapa: “propomos que o Estado inicie um processo de privatização de parte das instituições universitárias e politécnicas que detenha”. Haverá um Cheque-Ensino de 350€ e as escolas que se mantiverem públicas poderão contratar quem quiserem, mas estarão “dependentes única e exclusivamente do cheque-ensino sem qualquer complemento concedido pelo Estado”. Além disso, “em todos os graus de ensino”, sublinha André Ventura, os professores “recuperam totalmente a autoridade perdida sobre os alunos, sendo-lhes devolvidos todos os meios que lhes permitam manter a disciplina nas aulas”.

Na saúde, a sua visão é a de substituição do SNS por um Mercado da Saúde, no qual o Estado ”não deverá, idealmente, interferir como prestador de bens e serviços”. O Ministério da Saúde passaria a ter meras funções de “arbitragem, de regulação e de inspeção”, começando, claro, por “promover a gestão privada dos hospitais públicos”. Mesmo se, no documento “70 medidas para reerguer Portugal”, o Chega propõe afinal “rever ou renegociar todas as PPPs lesivas ao erário público”. É aliás na área da Saúde que o Chega assume o seu perfil xenófobo ao limitar o direito a médico de família “a gente que nasceu em Portugal”.

Nos impostos, o Chega quer que o Estado deixe “de querer ser o Robin dos Bosques” e por isso quer abolir o IMI, o imposto de mais-valias e criar uma taxa única de IRS. Como explica na sua “Declaração de princípios e fins”, o “atual sistema de extorsão fiscal” está “transformado em terrorismo de Estado”. O dramatismo é acentuado no programa ao afirmar que “só voltaremos a ser livres, verdadeira e fundamentalmente livres” ao compreender “a escravidão sofisticada em que a filosofia e as políticas igualitárias nos têm vindo, insensível, mas tenazmente, a mergulhar”.

As propostas para o trabalho são previsíveis, considerando estar-se perante um político que aderiu ao programa da Troika: “flexibilização dos fluxos de entrada e saída da situação de empregado”, o que “só é possível se os custos de “empregabilidade” - salários, restrições legais, horários de trabalho rígidos, difícil acesso a informação, contribuições para a segurança social e custos de despedimento - forem reduzidos”. Por último, André Ventura aponta baterias aos “inquilinos idosos que residem sozinhos em casas arrendadas sobre-dimensionadas”. Como? Pois, de forma a “incentivar e apoiar” a sua “mobilidade” o Chega propõe a “renegociação destes contratos”, mas “mantendo a freguesia de residência se assim o desejarem”, para “disponibilizar no mercado imobiliário maiores casas para as famílias”.

Claro que destruir o SNS, a escola pública, baixar salários, diminuir a carga fiscal dos ricos e despejar idosos não tem o mesmo eco que papaguear injúrias contra minorias étnicas. Ventura pôs os pés pelas mãos, retirou o programa do site, depois voltou a publicá-lo, mas anunciou que o iria rever no congresso do partido. Tal como os partidos “do sistema”, depois das eleições o Chega dá o dito por não dito. A originalidade de André Ventura é que, depois das eleições altera o programa eleitoral!

Como responder a André Ventura?

O Chega é um partido que quer que os ricos fiquem mais ricos e os pobres mais pobres mas que o defende de forma atabalhoada e sem coerência. Vejamos a discussão parlamentar sobre saúde. Apesar do proposto no programa do Chega, Ventura defendeu que era preciso mais reforços para o SNS. Ou o exemplo dos Vistos Gold, o famoso esquema de venda de autorizações de residência, que tem sido duramente criticado por instituições como o Parlamento Europeu e a Transparência Internacional por promover a corrupção, a lavagem de dinheiro e aumentar a insegurança. Quando a Assembleia da República votou uma proposta que previa o fim dos Vistos Gold o Chega, que apregoa recorrentemente o combate à corrupção e à insegurança, votou contra. Depois disso, veio a público que Ventura acumula o cargo de deputado com o de consultor da Finparter, uma empresa especializada na aquisição de vistos gold e imobiliário de luxo. Em suma, em termos de políticas económicas e sociais o Chega defende tudo e o seu contrário e quanto mais se souber o que realmente defende, pior para ele.

Quanto a André Ventura, o seu ponto fraco é a obsessão pela fama. Pela via falhada da prosa, dos comentários futebolísticos (chegou a anunciar uma candidatura à direção do Benfica, juntamente com Rui Gomes da Silva) ou da política xenófoba, Ventura está disposto a tudo. Alguém que se refere a si próprio na terceira pessoa dirá o que for preciso para se manter na ribalta. Mas a verdade é que é, ele próprio, um exemplo daquilo que condena. Foi dirigente do maior partido da troika e da austeridade. Ventura não tem nada de antissistema, tal como não tem nenhuma coerência.

Sabendo tudo isso, Ventura vai continuar a tentar criar clivagens sociais sobre imigrantes e minorias, apostando desde logo nos setores das forças de segurança empenhados em manter o atual quadro de impunidade dos abusos de força. A resposta imediata e feroz a cada provocação que Ventura lança é um erro, sobretudo nas redes sociais, onde os seus seguidores se organizam disciplinadamente para inundar posts e caixas de comentários. É a partir de discursos de pânico assentes frequentemente em sites de notícias falsas que partidos de extrema direita como o Chega conseguem criar ambientes distorcidos, aparentando uma força muito maior do que a que têm. Foi assim que, em Espanha, o Vox saiu da marginalidade política.

A luta antirracista, antissexista, pelos direitos LGBT+, a luta pela igualdade, a luta pelos direitos humanos é a luta unitária da esquerda, é uma luta quotidiana, não em oposição a cada provocação da extrema-direita mas em oposição ao capitalismo. Em oposição ao racismo estrutural, ao racismo sistémico, ao racismo subtil, ao racismo assumido, a todos os tipos de discriminação e desigualdade que são inerentes ao capitalismo.

O crescimento da extrema direita não pode ficar sem resposta. Mas vejamos e aprendamos com os exemplos das campanhas contra Bolsonaro ou Trump. Perante o descrédito dos partidos tradicionais, a elite económica aprende a tolerar ou decide mesmo deixar-se representar pelo populismo reacionário: a globalização capitalista precisa de uma democracia menor, fechada em medos particulares e aspirando a autoridade. Essa é a direita que o Chega quer ser - e a forma como CDS e PSD têm mimetizado as derivas de Ventura, mostra que a direita portuguesa passará por mudanças como as que já ocorreram noutros lugares. Quando à esquerda, se ficar à defesa, respondendo a cada provocação da extrema direita nos temas que esta escolhe, ficará refém de si mesma. Pelo contrário, poderá vencer a direita regressiva se afirmar um programa claro de emancipação, em choque com o regime económico de precariedade, corrupção e devastação ambiental.