De que falamos quando falamos das novas extremas-direitas? | Cecília Honório e João Mineiro

agosto 18, 2021 0 Comentários A+ a-

Aqui pode ler-se o capítulo introdutório do livro Novas e Velhas Extremas-Direitas (Parsifal, 2021), escrito por quem o coordenou, Cecília Honório e João Mineiro.

Nos últimos anos, a extrema‑direita voltou a ocupar as capas dos jornais um pouco por todo o mundo. Depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, de Bolsonaro no Brasil, do Brexit, da chegada de Matteo Salvini ao Governo em Itália, da consolidação de Viktor Orbán na Hungria e da aproximação ao poder de Marine Le Pen em França, dispararam‑se todos os alarmes sobre um fenómeno, que, por um lado, é difícil de catalogar e, por outro lado, não é algo novo, ainda que tenha sofrido transformações notáveis nas últimas décadas.

O surgimento, a consolidação, a reconfiguração e a expansão social, política e eleitoral de novos partidos e movimentos de extrema‑direita constituem a mais importante transformação política dos nossos dias e um dos principais desafios às democracias herdadas do pós‑guerra e, no nosso caso, da Revolução de 1974/75. Conhecer, investigar e escrutinar as características, a evolução e as estratégias destes partidos e movimentos foi o ponto de partida que juntou as autoras e os autores deste livro.

Nos nossos dias, há quem veja a afirmação das novas extremas‑direitas como uma mera repetição do fascismo histórico – posição que, no mínimo, consideramos imprudente, como se bastasse recorrer às experiências passadas da “época dos fascismos” para compreender as características políticas e históricas do presente. Outros, ainda, apresentam as novas extremas‑direitas como um fenómeno provavelmente passageiro, circunstancial e pouco preocupante, que as forças políticas do centro, fruto da sua suposta vocação moderada e universal, tratariam de remeter à irrelevância a partir do lugar referencial que acreditam continuar a ocupar nos sistemas políticos contemporâneos. Mas também há quem vá mais longe, guiado pelo processo de normalização em curso, argumentando que a extrema‑direita é uma mera expressão da própria pluralidade da democracia liberal, não constituindo uma ameaça à sua subversão. Nem lhe chamam extrema‑direita, rotulando‑a com outros eufemismos, por exemplo, “nova direita antissistema”, ocultando o singelo pormenor de que a generalidade dos seus líderes vem de dentro do sistema, sendo que em nenhum momento colocam em causa o capitalismo neoliberal e o sistema financeiro, antes pelo contrário.

Nas palavras de Riccardo Marchi, em Portugal um dos principais defensores desta tese, estes “são partidos que pertencem ao jogo democrático e cumprem as regras”, “faz parte do seu ADN, estão convictamente inseridos no paradigma da democracia liberal”, “não saem do modelo de democracia liberal que conhecemos, e que assenta na separação de poderes. Não são antidemocráticas”.

A estas perspetivas opomos três argumentos, amplamente desenvolvidos e debatidos neste livro, ainda que de forma plural. Primeiro, estas extremas‑direitas são fenómenos de tipo novo, que se afirmam em circunstâncias históricas particulares, apresentando alcances sociais, económicos, culturais e políticos distintos. Neste sentido, seguimos Enzo Traverso, quando este argumenta que o termo fascismo é simultaneamente desadequado e indispensável, já que estas novas forças tanto se afastam da retórica e da simbologia do fascismo histórico, como ao mesmo tempo dele são herdeiras, recrutando e reabilitando alguns dos seus quadros históricos, reatualizando o seu ideário cultural e replicando uma estratégia política nacionalista, autoritária, xenófoba, antiliberal e de ataque às conquistas do mundo do trabalho, ao Estado social e às políticas de igualdade, reconhecimento e redistribuição.

Em segundo lugar, as novas extremas‑direitas não são um fenómeno residual, assimiláveis pelas mágicas virtudes do centro político. Pelo contrário, elas são resultado das políticas desse mesmo centro, no quadro da cedência da social‑democracia ao neoliberalismo desde a década de 80 do século XX, e em particular no contexto das políticas de austeridade que, no pós‑crise financeira de 2008, acentuaram a destruturação do Estado social, a corrupção financeira e a precarização do trabalho e da vida da maioria. Sejamos ainda mais claros: as elites do centro querem agir como bombeiras de um fogo que elas próprias atearam e continuam a atear. É, pois, no caldo da crise do capitalismo, na sua fase neoliberal e financeira, que a extrema‑direita encontra espaço social de crescimento, perante a derrota histórica das alternativas de esquerda desde o final da década de 80 do século XXI e no contexto da liberalização, da financeirização e mercantilização das economias e das sociedades contemporâneas.

Finalmente, um terceiro aspeto que queremos destacar é que as novas extremas‑direitas não são inofensivas ou uma espécie de catarse benigna e passageira da democracia liberal. Na verdade, são um fenómeno político em transição, que estrutura um novo tipo de autoritarismo.

É certo que muitas destas forças participam em Governos desde a década de 90, aliadas às direitas tradicionais, crescentemente radicalizadas, e perante o esvaziamento político e ideológico da social‑democracia, desaparecida ou irrelevante em tantos países onde foi referência desde o pós‑guerra. O seu programa é o da reconfiguração das direitas clássicas. Contudo, sempre que foram maioria, exemplo da Hungria de Orbán, da América de Trump, do Brasil de Bolsonaro, ou quando tiveram força política para impor a sua agenda, como na Itália de Salvini, estas forças lidaram mal com a democracia, com o pluralismo e com os direitos sociais. A sua agenda foi a do ataque à separação de poderes e às constituições, a perseguição de minorias e de jornalistas, o reforço das milícias violentas de rua, a intoxicação massiva do debate público com manipulações e mentiras, a legitimação do racismo, a exploração do discurso de ódio e a subversão de direitos, liberdades e garantias. Trump foi ainda mais longe, ao ensaiar o não reconhecimento dos próprios resultados eleitorais e a instigação de um patético assalto ao Congresso. Só faz sentido chamar a tudo isto, como faz Marchi, de “respeito pelas regras democráticas”, se a democracia se tornar um significante vazio de significado.

 

Analisar as extremas-direitas como meras réplicas do passado pode ser tão perigoso como vê‑las como caprichos do sistema. É percebendo a sua diferença que nos preparamos para a intervenção.

 As novas extremas‑direitas são diferentes entre si, mas preconizam um novo tipo de autoritarismo, que exige reflexão e análise permanente. Analisá‑las como meras réplicas do passado pode ser tão perigoso como vê‑las como caprichos do sistema. É percebendo a sua diferença que nos preparamos para a intervenção. Foi também esse o propósito que motivou a edição deste livro.

Aqui, os leitores e as leitoras podem encontrar um conjunto de contributos interpretativos plurais e diversos que permitem avançar no conhecimento, na comparação e na caracterização destas novas extremas‑direitas. Parte destes contributos aprofunda comunicações apresentadas no “Congresso Internacional Neofascismo, Pós‑fascismo e Novas Extremas‑Direitas – Uma Visão à Escala Global”, promovido pelo Instituto de História Contemporânea (UNL) e pelo Observatório de Extrema‑Direita/Cultra, em novembro de 2020.

O livro organiza‑se em duas partes: na primeira, faz‑se uma caracterização geral das novas extremas‑direitas, no que diz respeito à sua relação com o fascismo histórico, às suas características nacionais e globais, e quanto a alguns dos seus principais eixos programáticos e de retórica política; na segunda parte do livro desenvolvem‑se de forma mais aprofundada diversos casos de estudo, em que as novas extremas‑direitas têm ganhado maior expressão política, social e eleitoral, do caso francês ao italiano, assumindo‑se a necessidade de avaliar a especificidade das extremas‑direitas peninsulares.

De que são nome as novas extremas‑direitas? Os contributos deste livro são plurais e nem todas as análises são coincidentes, desde logo por nos propormos a estudar um fenómeno político em curso e em mutação. Do nosso ponto de vista, as novas extremas‑direitas, sendo fenómenos de tipo novo, simbolizam uma nova política em que a realidade objetiva não existe, já que cada pessoa ou grupo pode observar a sua própria realidade. A nova política da extrema‑direita aposta numa experimentação social de técnicas de envolvimento compulsivo, de adesão imediata, de apelo emocional aditivado com bombardeamento de conteúdos que manipulam a realidade, através do recurso às mais sofisticadas tecnologias digitais.

Como refere Giuliano da Empoli, a comunicação política passou de “força centrípeta” a “força centrífuga”, quer dizer, se antes as diferentes forças políticas se dirigiam à generalidade das pessoas, procurando o convencimento a partir de denominadores que conquistassem maiorias, hoje podem dirigir mensagens personalizadas, para obter consumo imediato, a partir de bolhas sociais sem contraditório, em que as fake news proliferam como cogumelos. É por isso, aliás, que tantos dos textos deste livro salientam a ambiguidade discursiva da extrema‑direita, e ao mesmo tempo a sua exímia eficácia. As mensagens podem ser inverosímeis porque são dirigidas a quem lhes é sensível. Por detrás desta transformação oculta‑se o programa essencial da nova extrema‑direita: o fim da esfera pública e a morte da política.

Quando Trump, perante os resultados eleitorais de 2020, apela enlouquecido no Twitter para que os milhões que nele votaram não reconhecessem os resultados eleitorais, estava a ensaiar o derradeiro passo que faltava: a tentativa de perpetuação autoritária no poder a partir da rejeição, por milhões de pessoas, do próprio processo eleitoral. Não foi bem‑sucedido, mas o aviso está dado. Escrutinar os partidos, movimentos, agendas, discursos e estratégias da extrema‑direita, tanto nos planos nacionais como a nível global, é o contributo que este livro pretende oferecer para o debate em curso que estas reflexões estão longe de esgotar. Sabemos que o verdadeiro combate está para lá destas páginas, na proposta política, na luta social e na disputa das ideias, onde tudo se ganha e tudo se perde. Foi também para esse combate que quisemos contribuir, porque não é tempo de desistir de tudo aquilo que conquistámos, nem abdicar de um outro futuro que continua a estar ao nosso alcance.