Quatro Pontos sobre a Extrema-Direita em Portugal | Artigo de Fernando Rosas

janeiro 17, 2022 0 Comentários A+ a-

Foto de Alisdare Hickson/ Flickr.
 

A extrema-direita, ou uma parte dela, está em emergência em Portugal. Logrou pela primeira vez em democracia eleger um deputado para o parlamento nas eleições de 2019 e, nas eleições presidenciais de janeiro deste ano, registou 11,9 % dos votos. Conduzindo uma guerra tóxica nas redes sociais, o partido Chega e o seu chefe, André Ventura, estão empenhados numa ofensiva de revisão ideológica reabilitadora da história do regime fascista, do colonialismo e da guerra colonial, ao mesmo tempo que falsificam grosseiramente a informação e insultam e caluniam as forças de esquerda antifascista que lhes fazem frente. Sabedora da iminência de alianças com os partidos da direita tradicional (já verificadas nos Açores), a extrema-direita, através de uma caótica e agressiva campanha ideológica de reabilitação do passado ditatorial e colonial sem precedentes desde o 25 de Abril de 1974, na realidade prepara ideologicamente o terreno e tenta abrir caminho para um regime autoritário de novo tipo em Portugal. Vale a pena observar este processo mais de perto procurando responder às quatro questões seguintes.

 

1.      O que é e o que não é a nova extrema-direita?

Em síntese poderá dizer-se que ela é o novo tipo de autoritarismo para que tende a lógica do desenvolvimento da época neoliberal do capitalismo. Desde os anos 80 do século passado, o neoliberalismo como sistema económico impôs-se mas não venceu. Não só não logrou derrotar as enormes resistências sociais e políticas que suscitou, como não conseguiu operar generalizadamente a transformação autoritária e antidemocrática dos velhos sistemas liberais do pós-guerra, exigida pela imposição “normalizadora” das suas políticas de extrema violência antissocial.

Precisamente, a crise do seu modo de dominação que essa resistência potencia reclama uma mudança política e ideológica na contraofensiva do capitalismo neoliberal e isso desperta um tipo distinto de correlação de forças. Concretamente: a radicalização política da direita oligárquica e neoliberal e a sua aliança instrumental com uma nova extrema-direita que lhe abre caminho com novas e inéditas formas de brutalização da política e de ataque à democracia e às conquistas históricas do mundo do trabalho, da luta das mulheres, das minorias racializadas e de género.

Essa nova extrema-direita tem assim uma dupla origem: nasce da própria crise sistémica do capitalismo neoliberal e vem do fascismo e do neofascismo grupúscular, todavia com novas características adaptadas à situação atual. Convém ter presente essas diferenças. O mundo do primeiro quartel do século XXI não é o dos anos 20 e 30 do século passado. A nova extrema-direita não se apresenta agora (pelo o menos por enquanto) como “revolucionária” e de assalto subversivo ao poder. Quer-se “ordeira”, engravatada, aceitando o jogo do sistema parlamentar, pretende-se “respeitável”. Também não faz, para já, a apologia de uma ditadura antidemocrática e de partido único, finge aceitar a democracia. Não ostenta o culto da violência terrorista, miliciana e militarizada do fascismo plebeu do passado, apesar das ligações diretas, por detrás da cortina, que mantém com grupos neofascistas violentos. Igualmente desvaloriza a centralidade da ideologia (o organicismo corporativo, o anticomunismo) a favor de um pragmatismo caótico, contraditório e oportunista, onde se cruzam clichés do ultranacionalismo colonialista, da demagogia populista, da xenofobia e do racismo. Pode ser que estas características sejam transitórias e a extrema-direita de hoje se venha a revelar, neste processo de redefinição do campo das direitas, como uma espécie de continuismo com o fascismo pretérito. Em todo o caso, não é assim que ela se apresenta na situação atual.

 2.   Quais são, então, as suas novas e distintivas características?

Em primeiro lugar, a nova extrema direita afirma-se naquilo a que, em trabalho recente, Louçã chama as “sociedades do medo” e da insegurança que ela própria fomenta, sobretudo através das redes sociais, de uma “tecnologia da intoxicação, operada por estes” engenheiros do caos”[1]. Dessa forma organiza a mentira torrencial, a fabricação da falsidade e da calúnia informativa e, sobretudo, a instrumentalização não só da revolta dos deserdados da globalização mas também do medo (medo do desemprego, da precariedade, da desproteção na doença, medo do outro em geral) e da ignorância obscurantista sistematicamente fomentada. Este tipo de discurso político agressivo, catastrofista e caótico reúne no, caso português uma base social complexa: os setores mais radicais das direitas tradicionais, camadas, intermédias da burguesia assustadas com a crise e em busca de solução autoritárias e radicais de sobrevivência (pequenos e médios e alguns grandes empresários, quadros técnicos, membros das forças de segurança, populações rurais com forte presença de imigrantes) e segmentos sociais atingidos pelo desemprego, pela precariedade, pelos despejos, socialmente desprotegidos e politicamente sub-representados.

Em segundo lugar, estamos perante uma força política que assenta toda a sua intervenção num novo tipo de obscurantismo, no discurso de ódio, na exploração dos instintos primitivos nascidos do medo, da insegurança e do caos fomentado nas redes sociais ou a partir delas. É nesse terreno social e político que radicam a xenofobia, o racismo, o sexismo, a demagogia ultranacionalista, a reabilitação retrospetiva do fascismo e do colonialismo, a apologia do autoritarismo, o anticientifismo.

Em terceiro lugar, a nova extrema-direita criou um tipo de liderança particular: o bufão, o “palhaço perverso”, mentiroso e despudoradamente contraditório[2]. Só que isso não é nenhuma originalidade burlesca, um narcisismo irreprimível, antes representa uma estratégia de poder uma forma de conquistar a hegemonia baseada na mentira despejada torrencial e repetidamente, no arbítrio em vez da coerência, na incompetência caótica que oculta a verdade. O “chefe” busca a adesão irracional, quer-se temido e venerado e não compreendido. Este estilo de política representa, em suma, uma forma desesperada da oligarquia recuperar a iniciativa quando o seu modo de dominação cai no impasse.

Finalmente, a emergência da extrema-direita aposta na morte da política, tentando encarcerá-la na lógica hipercomunicativa e manipulatória das redes sociais. Efetivamente, a hipercomunicação, sob a aparência da comunicação, promove o isolamento, a desestruturação da ação coletiva, a fragmentação social, ou seja, um ambiente de máxima comunicação e de máximo controlo. Mais do que isso, banaliza e esvazia o protesto em favor do espetáculo da mentira hiperbólica mil vezes repetida e de crenças irracionais baseadas na incoerência e no arbítrio. A adesão assim obtida transforma-se no contrário de um ato libertador. É uma forma de sujeição totalitária, antecâmara do regime de violência social e política que a extrema-direita e os oligarcas têm como objetivo.

 3.    Uma maldição inopinadamente caída do céu?

Ao contrário do que sugerem alguns politólogos ou comentadores de um certo centrismo inquieto e perplexo, a nova extrema-direita não é uma invenção perversa de mentes “extremistas” dos dois polos do espectro político, uma estranha maldição subitamente desabada sobre os equilíbrios da ordem estabelecida, uma bizarria absurda de aventureiros sem escrúpulos. A nova extrema-direita tem uma natureza de classe precisa e uma estratégia clara: exprime tendencialmente o propósito de estabelecer uma nova forma de autoritarismo por parte das oligarquias financeiras, onde se junta um programe neoliberal radical com a brutalização da política. Para tal, a “direita clássica” projeta aliar-se com a direita xenófoba e racista como forma de abrir caminho. Em Portugal, vários ideólogos da direita conservadora e destacados políticos dos partidos da direita tradicional já formulam esse desiderato sem ambiguidades. E no plano político-partidário, essa aliança já se iniciou após as eleições regionais nos Açores (um governo do PSD apoiado parlamentarmente pelo Chega), vai ter expressão informal em várias autarquias das eleições locais e, sobretudo, aponta para as eleições legislativas de 2023. Minoritária social e eleitoralmente no país, a direita tradicional portuguesa julga poder superar a crise em que se debate através da aliança com uma extrema direita emergente. É nisso que consiste o processo de reorganização em curso na direita portuguesa: promover um processo de radicalização da aliança com a extrema direita numa frente comum onde se casam duas violências. A do neoliberalismo à solta e a do novo autoritarismo.

 4.    E não se pode combatê-la?

É bem certo que o grotesco e a palhaçada perversa da extrema direita tendem a esvaziar-se, a prazo, face à realidade. A evidência da irresponsabilidade e da incompetência são o preço da manipulação e da mentira repetidas mil vezes. Por isso, os partidos ou os regimes de extrema-direita tornam-se vulneráveis e alguns deles (vejam-se os casos de Trump e Bolsonaro) escorregam para o autoesgotamento. Mas a verdade, igualmente, é que nem todos os partidos ou regimes aparentados com a extrema-direita se deixam vulnerabilizar pelo excesso do grotesco e consolidaram o seu poder crescentemente ditatorial (Índia, Turquia, Hungria, Filipinas). Mesmo os que foram derrotados, como Trump, mantêm apoios sociais e políticos que não excluem o seu regresso. Ao contrário do que explicam os políticos e sábios do centrismo dominante no governo e nos media portugueses e não só, a nova extrema-direita não é uma inexplicável extravagância fomentada em partes iguais por radicais de direita e de esquerda que se equivalem. É a expressão, já o referimos, de algo bem mais vasto e inquietante: o extremar da contraofensiva neoliberal através da aliança dos partidos da direita tradicional com os grupos da direita pós-fascista. Trata-se de uma mudança estrutural no sistema político vigente. E tal como o centrismo político (social democrata e de centro direita) capitulou perante o advento do neoliberalismo nos anos 80 e 90 do século passado, prepara-se agora para naturalizar e desculpabilizar a radicalização e a brutalização social e política das direitas, fazendo-as equivaler às esquerdas. Ou seja, tentando neutralizar a resposta antifascista das esquerdas. Sem sequer se aperceberem disso, ensaiam uma espécie de repetição da rendição do velho liberalismo de entre as guerras perante o advento do fascismo no século XX. É por isso que o atentismo, ficar à espera que as forças da direita recuem ou caiam por si próprias multiplicando condenações piedosas em todas as direções, não parece ser caminho para uma verdadeira resposta. Ao contrário, é a rota para a capitulação face ao neoautoritarismo montante.

A questão é que, precisamente, o fulcro de um combate consequente à extrema-direita está à esquerda. Nessa esquerda anticapitalista que tanto incomoda o centrismo. Mais precisamente, uma esquerda transformadora e emancipatória que transporte no âmago da sua ação o projeto do socialismo, mas igualmente uma alargada capacidade de mobilizar e dialogar com todas as sensibilidades do antifascismo. E que, em termos práticos, imediatos, saiba lutar contra o medo defendendo e garantindo a segurança das pessoas, seja capaz de estar na luta, dentro e fora do parlamento, dia a dia, à precariedade e ao desemprego, defendendo o Serviço Nacional de Saúde, mobilizando pelo o direito à habitação e contra os despejos, lutando pelo salário e as pensões, exigindo o alargamento dos apoios sociais, denunciando a corrupção. Numa palavra, retirando à extrema direita, parcela a parcela, todo o território do medo e do descontentamento popular que ela possa instrumentalizar.

Aspeto absolutamente central, a meu ver, é o da luta das ideias, o combate pela hegemonia, com o qual tudo se perde ou tudo se ganha. Face ao neoobscurantismo da extrema-direita, a batalha ideológica contra a discriminação das mulheres, contra o racismo, contra a homofobia assume enorme prioridade. Tal como a luta pela memória histórica.

Em Portugal, a direita conservadora passou do silêncio sobre o passado, da organização da desmemória, dos tabus sobre o colonialismo e a guerra, para uma aberta apologia ideológica do colonialismo e da guerra colonial, dos “heróis” das “descobertas” e das “campanhas de África” e indiretamente da ditadura, usando como porta vozes mais ousados e vocais os grupos de extrema-direita. É uma querela sobre coisas e entidades irremediavelmente mortas, mas que a direita e a extrema-direita repõem em discussão de forma populista e demagógica no quadro da agitação pela a sua afirmação política. Talvez na esperança de que a manifesta impopularidade do seu programa político possa ser compensada pelo apelo a um “colonialismo popular” difuso, mas socialmente enraizado por cinco séculos de dominação imperial. É talvez duvidoso que este discurso passadista e eivado de um hipercolonialismo bafiento possa ter impacto mobilizador junto de uma população assoberbada pelos receios da pandemia, do desemprego, dos cortes salariais, da iminência dos despejos ou das falências. Mas ele não visa, obviamente, nem repor qualquer forma de rigor histórico, nem responder a esses problemas. O seu propósito é o de criar um ambiente de tensão chauvinista e demagógica mais propícia à captação de apoios fruto do desespero e do medo. Por isso, creio que não podem os cidadãos em geral e os historiadores e investigadores em particular fugir a esse debate. Para que um dia, ao sacudir o torpor da passividade, não houvéssemos de constatar que as ideias do nacional-populismo se tinham convertido em senso comum, e já nada havia a fazer.

Resumindo, é preciso travar a luta toda: no plano político, na frente social e no campo das ideias. É esse o desafio dos nossos dias.

 

| Artigo de Fernando Rosas, publicado originalmente em Novas e Velhas Extremas-Direitas, Coordenação de  Cecília Honório e João Mineiro (Lisboa: Parsifal, 2021).

 



[1] Francisco Louçã, “A sociedade do Medo” in Revista do Expresso, 24/04/2020, p. 22 e segs.

[2] Idem, “A estratégia do bufão” in Revista do Expresso, 15/08/2020, p. 31 e segs.