Itália: numa democracia moribunda, vence a extrema-direita | David Broder

outubro 13, 2022 0 Comentários A+ a-

Fonte: Wikimedia Commons

As eleições em Itália permitiram um novo avanço da extrema-direita e constituíram mais um indicador da radicalização da direita. A coligação das direitas obteve um resultado de 44%, mas o grande vencedor é o partido Fratelli d'Italia de Giorgia Meloni, com um resultado de 26% muito superior aos 4% que obteve em 2018.

Os aliados de Meloni obtiveram resultados medíocres. No caso da Forza Italia de Silvio Berlusconi (8%), esperava-se. Inversamente, a Lega liderada por Matteo Salvini - a estrela em ascensão da política anti-imigrante há apenas alguns anos - caiu muito mais do que previam as sondagens (quedando-se nos 9%) e obteve pontuações baixas mesmo nos seus antigos bastiões do Norte.

O sucesso de Meloni deve-se, em parte, ao facto de ela aparecer como uma «outsider» - ou pelo menos, foi a imagem que construiu para reunir o eleitorado de direita. Fratelli d'Italia foi o único dos três partidos de direita que não se juntou ao governo de «unidade nacional» de Mario Draghi em fevereiro de 2021; ao longo dos dezoito meses que antecederam esta eleição, Meloni combinou marcas externas de respeito por Draghi com a promessa de que só ela poderia liderar um governo escolhido diretamente pelos italianos.

No entanto, este resultado, incluindo o lamentável desempenho do que passa por ser a “esquerda” (em torno do Partido Democrata), é também o produto de uma desertificação mais ampla do campo político. O partido de Meloni tem laços óbvios com a tradição neofascista, mas o seu sucesso deve-se também a um fenómeno claramente pós-moderno, que tem dominado cada vez mais a vida pública italiana nas últimas três décadas: a redução dos horizontes políticos à alternativa entre a gestão tecnocrática da crise e uma extrema-direita reaccionária nas suas políticas económicas e de direitos civis.

A natureza sinistra desta escolha é também visível no enorme afastamento popular do processo eleitoral. Nas décadas do pós-guerra, a democracia italiana baseou-se em partidos de massas com milhões de membros; a participação eleitoral foi sempre superior a 90% até à década de 1980. A participação na votação de 25 de setembro foi inferior a 64%, com abstenção massiva no Sul e (a julgar por sondagens anteriores semelhantes) entre a classe trabalhadora e os jovens italianos em geral.

Neste contexto, os adversários de Meloni carregam sérias responsabilidades. Estas residem em parte na chamada Lei Eleitoral Rosatellum, aprovada em 2017, que concede à maior coligação uma grande maioria de assentos, mesmo com uma minoria de votos. A isto soma-se a incapacidade de formar uma coligação alternativa, ampla e radical que poderia ter tornado esta eleição competitiva.

Mas os resultados decepcionantes dos partidos supostamente «progressistas», dos liberais-europeístas do Partido Democrata (19%) ao Movimento 5 Estrelas (15%) também são sintomas de um enfraquecimento que remonta a várias décadas da ligação entre a vida da classe trabalhadora, a política de esquerda e até a própria participação democrática.

A rápida ascensão e queda do Movimento 5 Estrelas (M5S) é uma boa ilustração disto mesmo. Grande vencedor das eleições em 2018, o M5S tinha obtido 32% dos votos com a promessa de devolver aos italianos o controle do processo democrático. Em vez disso, o partido provou ser uma formação sem bússola e pouco responsável, formando coligações primeiro com a Lega (um partido de extrema-direita), depois com os centristas do Partido Democrata, depois com os ambos mais Draghi. Tudo isso rebentou com as suas contradições internas e provocou o seu recuo eleitoral. Embora a ênfase do líder Giuseppe Conte nos programas sociais durante esta campanha tenha conseguido uma pequena recuperação, o M5S ainda fica a menos da metade da sua votação de 2018.

Em vários países europeus, vimos que os partidos históricos de centro-esquerda já não são capazes de mobilizar as suas bases, brandindo apenas o medo da direita. Nem mesmo quando, como no caso italiano, os partidos de direita combinam uma posição reacionária sobre questões de direitos civis com políticas económicas regressivas, como a introdução de uma taxa plana de imposto sobre o rendimento e a abolição do subsídio de desemprego.

A Itália é terra de grande história dos trabalhadores e antifascista, mas o apelo de última hora a esta tradição com o objetivo de impedir Meloni só foi capaz de mobilizar pequenas minorias.

Uma campanha desastrosa


No dia do lançamento da campanha eleitoral italiana, publiquei no New York Times um artigo intitulado «O futuro está em Itália, e é sombrio» que apresentava a Itália como um país atolado numa estagnação permanente e num estreitamento dos horizontes políticos entre tecnocratas e os «outsiders» de extrema-direita. Neste artigo afirmei que a Itália não é uma aberração, mas representa uma tendência geral no Ocidente: uma era de democracia esvaziada da sua substância e em crise permanente.

Nos meios de comunicação social italianos, minha menção às raízes neofascistas dos Fratelli d'Italia foi amplamente citada como prova dos temores norte-americanos em relação a Meloni. Embora tenha feito campanha por partidos estrangeiros de extrema-direita, como o partido espanhol Vox, Meloni referiu-se ao meu artigo, por três vezes, como interferência estrangeira; seu colega e fanfarrão Ignazio La Russa alegou ter reunido «várias evidências» de que este artigo de opinião foi produto de uma «conspiração para prejudicar a Itália». Alguns comentadores online até se preocuparam em encontrar a mão do Departamento de Estado dos EUA.

É um facto que a maioria dos meios de comunicação internacional contaram uma história um pouco diferente. Com a vitória da coligação das direitas quase garantida desde o início da campanha, muitos artigos concentraram-se no carisma pessoal de Meloni, nas suas qualidades de liderança e na sua ruptura com o passado fascista. Estes relatos pareciam ter dificuldade em ter em conta a repetida defesa da «teoria da grande substituição» - ou seja, a afirmação explícita de que a esquerda, em conluio com os «usuários», planeia a destruição da civilização ocidental.

Como apontou Fabio Chiusi, a fervorosa cobertura da última estrela em ascensão foi um «milagre típico daqueles que contam na política italiana: quanto mais ela se aproxima do gabiente do primeiro-ministro, mais moderada se torna». Este efeito de oscilação chegou mesmo a atrair antigos membros de outros partidos de centro-direita para o seu campo, chegando mesmo a render-lhe comentários indulgentes de Hillary Clinton.

Os partidários de Meloni parecem pensar, muitas vezes, que ela merece ser elogiada por se distanciar da ditadura fascista e do anti-semitismo. No entanto, insistir no argumento de que respeita o processo eleitoral é, em si mesmo, um critério muito pobre. O risco de um governo Fratelli d'Italia não é o fim da democracia, mas o agravamento da erosão do domínio público, desta vez nas mãos de uma força política que sempre desprezou a República do pós-guerra criada pelos partidos antifascistas.

Essa erosão provavelmente assumirá múltiplas formas: minar os gastos sociais, reescrever a Constituição e usar as funções governamentais para ridicularizar quem lutou na Resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, quanto mais medíocres forem os resultados do governo de Meloni, mais se tornará necessário concentrar-se nos temas de identidade, desde os apelos para um «bloco naval» no Mediterrâneo contra os migrantes até as medidas contra os «lobbies LGBT» e a «ideologia de género».

Tais obsessões têm raízes no fascismo, mas fazem também parte duma agenda nativista mais ampla, também representada por figuras vindas de tradições tão diversas como Viktor Orbán e Donald Trump. Neste sentido, o sucesso desta que carrega a velha chama neofascista provavelmente não significa de todo um retorno ao passado, mas o anúncio de algo novo.


*Artigo originalmente publicado na Jacobin; traduzido a partir da publicação na Contretemps - Revue de Critique Communiste, a 29 de setembro de 2022.